segunda-feira, 4 de outubro de 2010

"Um botim sem misericórdia nem graxa"

Van Gogh / telas de década de 80 do século 19

Van Gogh pintou várias quadros retratando sapatos “sem misericórdia nem graxa”. Essa expressão aparece em uma das mais conhecidas obras de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicada em 1881. Não é signficativo, aliás, que as telas de Van Gogh tenham aparecido na mesma época em que Machado de Assis escrevia seu romance? A elegância por vezes se encontra onde menos a procuramos, e pode mesmo consistir na descrição do que mais dela se afasta. Essa passagem de Memórias Póstumas ilustra o que digo:

“Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes, — ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.”

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